quinta-feira, 12 de junho de 2008

Do cinema e da música (1) - Andrei Tarkovsky

Continuemos então a falar das nossas descobertas e referências. O Andrei Tarkovsky é uma descoberta já de há uns 4 anos, mas quanto mais olho para os seus filmes mais aumenta o espanto, diria mesmo a petrificação!

Como este é um espaço sobre música, é sobre música que venho falar. A música nos filmes de Tarkovsky. Com a ajuda do YouTube, fantástica ferramenta para este tipo de textos.

Tarkovsky é um desses realizadores que descobriu que o uso da música em cinema tende a ser mais eficaz, mais potente, mais impressivo, quando é feito com parcimónia; assim, tende a reservar a música (falo aqui especificamente da música instrumental, geralmente colhida do repertório clássico) a momentos-chave do filme, de grande intensidade poética. A seguinte citação, do próprio realizador - algo longa, mas útil - ajuda a compreender:

"On sait que la musique a rejoint le cinéma, à l´époque où il était encore muet, avec le pianiste qui illustrait l´action à l´écran d´un accompagnement musical adapté au rythme et à l´intensité des émotions. Cette démarche était assez mécanique et arbitraire, une illustration facile par la superposition de la musique sur l´image, appelée à amplifier l´impression produite par telle ou telle scène. Aussi étrange que cela puisse paraître, c´est ce même principe d´utilization de la musique au cinéma qui se retrouve le plus souvent encore de nos jours. On soutient une scène d´un accompagnement musical, pour illustrer une nouvelle fois son thème central et en accroître la résonance emotionnelle. Mais parfois aussi la musique ne sert simplement qu´à sauver une scène bâclée.
En ce que me concerne, j´aime me servir de la musique comme d´un refrain poétique. Lorsque, dans un poème, nous trouvons un refrain, nous nous sentons comme ramenés, enrichis par ce que nous venons de lire, à l´inspiration première qui a porté le poète à écrire ces lignes. Le refrain nous ramène aussi à l´état qui était le nôtre quand nous sommes entrés dans ce monde poétique nouveau, et l´évoque d´une manière à la fois immédiate et renouvelée, tel un retour aux sources.
Utilisée en ce sens, la musique non seulement renforce l´impression de l´image visuelle par une illustration parallèle de la même pensée, mais elle nous ouvre en plus à la possibilité d´une impression neuve, transfigurée, qualitativament différente du même matériau. Plongés ainsi dans l´univers musical créé par le refrain, nous retournons chaque fois à des émotions que le film nous a déjà données de vivre, mais dans une expérience d´impressions et d´émotions renouvelée. Dans un tel cas, la partition musicale peut modifier la couleur et parfois même l´essence de la vie fixée dans le plan".

in Andrei Tarkovsky, "Le Temps Scellé", Petite Bibliotèque des Cahiers du Cinéma.


Efeito poético. Evitar a correspondência primária da música com a imagem. Tais desideratos só são compatíveis com a referida utilização parcimoniosa da música (como referi, falo da música instrumental, geralmente retirada do repertório), em momentos especiais: o início dos filmes, em que ajuda a definir o ambiente e, em particular, em instalar um certo estado de espírito no espectador – veja-se a utilização do Prelúdio Coral em Fá menor, para órgão, de J.S. Bach na abertura do filme Solaris, de um excerto do Requiem de Verdi em Nostalgia, ou da ária “Erbarme dich”, da Paixão Segundo S. Mateus de Bach, no início de Sacrifício; momentos muito importantes no decorrer dos filmes, em que, frequentemente, se ouve novamente a peça apresentada no início do filme, ou na cena final ou o início da Paixão Segundo S. João de Bach, no fim de O Espelho.

Vejam-se os seguintes exemplos:

Cena final de Solaris



Cena final de O Espelho



Ficando a utilização da música instrumental reservada a situações muito particulares, Tarkovsky acaba por desenvolver duas outras formas, interrelacionadas, de preencher as suas bandas-sonoras. Por um lado, irá recorrer, de forma sempre crescente ao longo da sua obra, à música electrónica; por outro, também com meios electrónicos, irá fazer um trabalho muito subtil sobre os próprios sons inerentes à acção do filme, seleccionando uns em detrimento de outros, filtrando-os e combinando-os, quase como se fosse um compositor a construir uma peça electro-acústica. O cinema é plenamente assumido como uma arte audio-visual, em que o elemento auditivo tem pelo menos tanta importância quanto o visual e, nalgumas situações, é até o elemento principal. Neste contexto, Tarkovsky acabará inclusivamente por revelar uma preferência pelo tratamento de certos objectos audio-visuais, como som da água (presente em todos os seus filmes), do fogo, do vento ou de veículos de transporte – sobretudo comboios –, dando a ideia que os escolhe tanto pela sua simbologia e aspecto visual como pelo seu conteúdo sonoro especialmente rico. Ouçá-mo-lo mais uma vez:

“Dans Le Miroir, le compositeur Artemiev et moi-même avons utilisé de la musique électronique. Je crois que ses possibilitées d´application au cinéma sont immenses. Nous voulions un son qui fut comme un écho lointain de la terre, proche de ses bruissements, de ses soupirs”

in Andrei Tarkovsky, idem

Segue um conjunto de exemplos para abrir o apetite:

Cena de Stalker (comboios, electrónica, particularmente a partir de 1:30)



Cena de Solaris (automóveis, auto-estrada, electrónica)



Cena de O Espelho (fogo, electrónica, água)



Cena de Nostalgia (água, canção popular, atmosfera onírica)



Espero que isto contribua, para os que ainda não o conhecem, para despertar a curiosidade!

Referência:

Site exclusivamente dedicado a Tarkovsky

3 comentários:

Ireth disse...

É muito bom ver que há pessoas que se interessam de uma forma interessante (passo a expressão) por um dos maiores génios do cinema.

Compreendo mal e bem o porquê de Tarkovsky permanecer tão desconhecido. Mas importa que haja pessoas que o descubram assim!

Daniel disse...

Quanto a mim, é mesmo o maior génio do cinema (e o Bergman dizia o mesmo, o que é significativo). Quanto ao pouco conhecimento que dele existe - é curioso como toda a gente ouviu falar de Bergman, de Fellini, de Hitchcock, mas não de Tarkovsky) é de facto muito e pouco compreensível. Mas da minha experiência, quando se mostra os filmes dele a alguém, e se tem o cuidado de dar o devido contexto, a maior parte das pessoas ficam também impressionadas e acabam por querer ver outros filmes (ou os mesmos mais uma vez, como tende a acontecer sobretudo com o Espelho...)

Ireth disse...

Sim, é verdade, foi exactamente isso que aconteceu comigo. Mostraram-me e quis mais, muito mais. E ando a tentar repetir o gesto porque realmente é de uma qualidade extraordinária...